Muito se tem falado sobre criptomoedas, um conceito disruptivo em sua natureza e com grande potencial para impactar a sociedade, em diversos níveis. Sempre que uma nova tecnologia é introduzida, há uma certa dificuldade em transmitir para o público não especializado sua verdadeira essência, quase sempre criando uma percepção errada sobre suas características e utilização. Esta percepção, amplificada pelos veículos de comunicação, acaba sendo determinante para a adoção e expansão da própria tecnologia.
Meu objetivo, ao escrever este artigo, é tentar dirimir algumas dúvidas comuns e contribuir para que não haja uma retroalimentação negativa, que venha a prejudicar a difusão das criptomoedas como alternativa viável aos meios de pagamento correntes. Em resumo: desmontar alguns mitos, amplamente difundidos e introduzir alguns conceitos importantes e tranquilizadores.
As criptomoedas, grupo de meios de troca digitais, cujo representante mais notório é a bitcoin (BTC), são mecanismos que permitem pagamentos de pessoa para pessoa, em qualquer lugar do mundo, com liquidação em poucos minutos. O valor de mercado das moedas é regulado apenas pelas leis da oferta e demanda e sua emissão não depende de governos ou Bancos Centrais. Sua base criptográfica (daí o prefixo “cripto”), permite que as transações e o processo de criação e transferência das moedas sejam seguros. Já o desenho peer-to-peer (P2P) da rede que gerencia as transações e mineração de novas moedas, garante que nenhuma entidade, pessoa ou governo possa assumir o controle isolado da infraestrutura.
As criptomoedas representam o ápice da convergência da criptografia com protocolos descentralizados. É como se o RSA encontrasse o BitTorrent e deste encontro nascesse a bitcoin (na realidade, para os mais rigorosos, a criptografia é ECDSA e o protocolo é apenas “semelhante” ao torrent). Grande parte do valor da tecnologia está na descentralização, resiliência e segurança advindas deste casamento. Por que a percepção de insegurança, então?
Bitcoins têm sido associadas a roubos, fraudes e especulação financeira. Paul Krugman chamou a moeda de “má” e de “longo cripto-engodo” no New York Times. Usuários de sites ilegais na “Deep Web” (como o Silk Road) faziam (e ainda fazem) transações escusas para compra e venda de drogas, armas e pornografia, em bitcoins. Péssimo pedigree, não? Mas não acontece o mesmo com o papelmoeda? Ouro? Diamantes?
Absolutamente todas as críticas às criptomoedas podem ser contestadas se entendermos exatamente para que elas servem, como devem ser utilizadas, armazenadas e quais os benefícios que elas trazem para a sociedade. Vamos começar por desfazer alguns preconceitos:
1) Bitcoin é uma moeda, como o Real ou o Dólar.
Errado. Na realidade, a bitcoin se parece mais com commodities como ouro e prata, uma vez que não possui os mecanismos estabilizadores de preço das moedas “fiat”. Ao contrário do ouro e da prata, no entanto, a bitcoin não tem um valor industrial embutido.
2) Bitcoin é uma reserva de valor.
Falso. O volume movimentado em todas as bolsas de bitcoin no mundo ainda é muito pequeno. Fora isso, existem uns poucos criptomilionários, capazes de facilmente manipular o mercado. A falta de mecanismos estabilizadores, o caráter especulativo da moeda e o pequeno histórico de negociações torna a bitcoin uma má reserva de valor.
3) As transações em bitcoins são completamente anônimas favorecendo atividades ilegais e lavagem de dinheiro.
Falso. Cada transação em bitcoins, desde a primeira (executada em 12 de janeiro de 2009, quando Satoshi Nakamoto transferiu 50 BTC para Hal Finney), fica registrada em uma estrutura denominada “Blockchain”. Se eu faço um pagamento em dinheiro, por exemplo, não existe nenhum tipo de registro da minha transação. Isto não ocorre no mundo das bitcoins. Uma vez feita a associação da identidade utilizada em uma transação com bitcoins a uma identidade “real”, é possível rastrear todo o conjunto de transações históricas. Existem inúmeras formas de se fazer esta associação e as agências de segurança e governos têm acesso a várias delas. Algumas criptomoedas foram desenhadas para oferecer completo anonimato, tais como a darkcoin e a zerocoin, mas ainda não existe um mercado relevante para elas.
4) Bitcoin é insegura.
Falso. Uma nota de 100 reais é insegura. Você pode esquecê-la em algum lugar, ela pode cair do seu bolso ou alguém pode roubá-la. A tecnologia por trás das bitcoins garante que não é possível forjar transações, falsificar moedas ou modificar o recipiente de um pagamento. Isto já as torna muito mais confiáveis que papelmoeda e alguns sistemas financeiros hoje em operação. Por outro lado, a carteira (wallet) onde suas bitcoins são armazenadas, pode ficar local em seu computador (que está sempre sujeito a contaminação por vírus e cavalos de Tróia), remota em um servidor (que também pode ser invadido por hackers, como aconteceu com a bolsa Mt.Gox), ou em um pendrive ou smartphone (que pode ser perdido ou roubado). O ideal é proteger as carteiras com senhas fortes e two-factor authentication, fazer backups digitais e em papel, guardando estes últimos em cofres, como fazemos com dinheiro em espécie.
5) Posso ter as minhas bitcoins roubadas por hackers.
Verdadeiro. Mas você também pode ter seu dinheiro roubado. Por isso que existem bancos! Todos os casos de roubo de bitcoins que vêm sendo noticiados têm a ver com a pobre infraestrutura de segurança implementada pelas empresas, bolsas, carteiras, que armazenam as bitcoins dos clientes. A maior bolsa de bitcoin, responsável por 70% das transações até a sua derrocada em 2014, teve origem em uma plataforma para troca de cartas de “Magic”. Daí o nome Mt.Gox, ou “Magic The Gathering Online eXchange”. Evidentemente, a plataforma não foi projetada por pessoas com experiência em tecnologia financeira. Este cenário está aos poucos mudando, depois que fundos de VC investiram cerca de 200 milhões de dólares em empresas do ramo, só em 2013 e 2014.
6) Bitcoin é o futuro das moedas.
Falso. Bitcoins não são compatíveis com as políticas monetárias modernas, por serem deflacionárias em sua essência. A oferta monetária de bitcoins é finita e fixa em 21 milhões. Não é possível emitir mais bitcoins além deste limite, o que torna muito pouco atrativa, para qualquer economia, a adoção de bitcoins como moeda. O mundo adotou moedas fiduciárias em 1971, quando os acordos de Bretton Woods e o que sobrou do padrão-ouro deram seus últimos suspiros. A adoção de bitcoins pelos Estados modernos implicaria deflação e desencorajaria a atividade econômica, favorecendo a acumulação. Evidentemente, é possível criar uma estrutura de criptomoeda diferente (novacoin, por exemplo prevê uma inflação dinâmica através do aumento da oferta monetária). O problema que emerge é qual seria a autoridade monetária, em um sistema distribuído e internacional, responsável por esta decisão.
7) Minerar bitcoins é um bom negócio.
Falso. Hoje, com a moeda a $240, só o custo da eletricidade necessária para fazer os “rigs” (computadores especializados, desenhados apenas para “minerar” bitcoins ou seja, resolver problemas envolvendo quebra de números enormes em seus fatores primos), supera em muito os ganhos. Existe um conceito embutido nas bitcoins denominado “dificuldade”. Esta “dificuldade” aumenta progressivamente, conforme novos blocos são “minerados”. Este mecanismo garante que a oferta monetária é finita e que o custo da criação de novas moedas só cresce. @HassMcCook, em um artigo muito interessante, calcula o custo anual de mineração de bitcoins em $785 milhões. Considerando-se que foram minera das cerca de 1,4 milhão de moedas em 2014, cada uma custou ao seu “minerador”, por volta de $560 ou seja, definitivamente, um mau negócio.
8) É difícil comprar, vender e utilizar bitcoins.
Verdadeiro. Hoje ainda são poucos os caixas eletrônicos que transacionam bitcoins e a maioria das bolsas exige transferência de recursos através dos bancos, levando vários dias para creditar. A maioria dos ATMs permite apenas que o usuário coloque papel-moeda e deposite BTC em sua carteira eletrônica. Alguns deixam que sejam retirados valores em moeda corrente. Entretanto, com os investimentos em novas startups, produtos melhores e mais amigáveis estão surgindo a cada dia, facilitando a vida do consumidor.
9) Bitcoins são ilegais.
Falso. A maioria dos governos já se pronunciou de alguma forma sobre bitcoins. Poucos são os que realmente baniram a moeda (Bolívia, Bangladesh, Equador, Quirguistão e Islândia). Outros tantos restringiram a sua utilização, entre eles China, Índia e Rússia. Brasil, Estados Unidos e União Européia estão entre os que instruíram suas autoridades tributárias a reconhecer a moeda e definir procedimentos para declaração e taxação de operações em BTC.
O melhor da tecnologia de criptomoedas ainda está por vir, no que está se chamando de Bitcoin 2.0. O caráter seguro e distribuído da infraestrutura já permitiu inovações no mercado financeiro, incluindo remessas internacionais a custos baixíssimos (Ripple), carteira e micropagamentos (Coinbase). No entanto, novos projetos envolvem e-voting, votação virtual, sem fraude, anônima e auditável (V), crowdfunding sem necessidade de um intermediador confiável (Koinify) e negociação de ativos dispensando a existência de bolsas (Bitshares).
A mais curiosa das novas aplicações das bitcoins é na Gestão de Direitos Digitais (DRM) ou seja, na restrição da difusão por cópia de conteúdos digitais. Uma tecnologia associada a assuntos ilícitos pode vir resolver um dos maiores casos de polícia do século XXI: a pirataria digital. Mas isto é assunto para outro artigo.
Sobre Alex Barbirato
- CEO da incube, Venture Builder baseada em São Paulo.
- Formado em Análise de Sistemas pela UFRJ, com pós-graduação em Relações Internacionais na PUC-RJ.
- Trabalhou no Banco de Investimentos Garantia e co-fundou o primeiro online broker brasileiro, a NetTrade, em 1998.
- É membro da Bitcoin Foundation, mentor de várias startups e apaixonado por tecnologia.
Links:
Alex Barbirato – LinkedIn
Incube
Bitcoin Foundation
Environmental Costs of Bitcoin Mining
Legality of Bitcoin by Country
Coinbase
Ripple
Mobile Voting Plataform
Koinify
Bitshares