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A construção do e-Notariado

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Como coadjuvante na construção do e-Notariado, na gestão do Colégio Notarial do Brasil, quero documentar para que possam compreender

Por Paulo Roberto Gaiger Ferreira

Dr. Paulo Ferreira Gaiger, Presidente do Colégio Notarial do Brasil, Conselho – Federal

Jorge, ou George Santayanna, foi um filósofo, ensaista, romancista e poeta, expoente da era do ouro da filosofia do século XX. Um homem de dois mundos, espanhol de berço, americano por escolha, optou por filosofar na Itália, onde, como o Papa, não era obrigado a devolver as visitas.

Na América, negaram-lhe o Pulitzer por não ser nativo1; na Europa, custaram a permitir o seu funeral no solo escolhido, Roma.

Santayanna é autor da seguinte boutade: A história é um monte de mentiras sobre eventos que nunca aconteceram contadas por pessoas que não estavam lá.

O notariado brasileiro documenta em seus livros os atos das pessoas que aqui vivem desde os primórdios coloniais, mas deixa uma lacuna em se auto historiar. Como sabemos por nossa tradição milenar, a história não deve ser um fardo para a memória, mas sim um brilho da alma.2

Como pequeno coadjuvante na construção do e-Notariado, na gestão 2017-2019 do Colégio Notarial do Brasil, Conselho Federal, quero documentar para que as gerações presente e futura possam compreender como foi pensada, gestada e, finalmente, lançada esta plataforma de serviços digitais que revoluciona a atividade notarial e tem gerado atenção da UINL, a União Internacional do Notariado.

As conquistas não nascem fáceis, grandes mudanças exigem muito trabalho, obstinação, inteligência e certa dose de sorte. O e-Notariado, como Roma, não foi construído em um dia.3 Tampouco em cinco semanas.

Disrupção

A tecnologia disruptiva, termo cunhado em 1995 por Bower e Christensen4 foi, e ainda é, a expressão da onda: novos meios de fazer operações necessárias à sociedade, quebrando os paradigmas de produção existentes, permitindo o atendimento massificado, com recursos tecnológicos de custos muito inferiores aos praticados até então.

A disrupção move as empresas de tecnologia, consolidadas ou start-ups, que buscam um lugar ao sol no final do arco-íris, bem ao lado do baú com ouro. A disrupção criou empresas que valem mais que o PIB da maior parte dos países. Dentre os 100 maiores orçamentos do planeta, 69 são de empresas privadas, restando 31 entes estatais.5

A disrupção é ameaça aos cartórios, ao notariado. No auge do blockchain hype, em 2016, jovens empreendedores falavam no fim dos cartórios6, vistos como entidades arcaicas que seriam suprimidas por linhas de código consensuais e imutáveis e, portanto, seguras, numa simplificação desconexa e grotesca. Seria a extinção dos cartórios.7

O notariado brasileiro sentiu o ataque e reagiu. A diretoria do Colégio Notarial do Brasil, Conselho Federal (CNB) eleita por aclamação em 2016, para o mandato de 2017 a 20198, tomou a si o desafio de buscar a autodisrupção, ou, mais modestamente, desenvolver as tecnologias necessárias para que a atividade notarial fosse ofertada em meio eletrônico, com uso de programas e aplicativos capazes de garantir os pilares da atividade, dentre eles, a legalidade, autenticidade, privacidade publicidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, e guarda perpétua dos arquivos.

Enfrentar o desafio tecnológico foi uma decisão política consensual do notariado brasileiro. Ainda assim, construir e moldar a atividade notarial em meio eletrônico requereu debate constante, a busca de pequenos consensos em meio às naturais disputas ideológicas, agravadas pela incerteza, preconceitos tecnológicos, recursos limitados e fetiches institucionais9.

Transformar os meios, abandonando sólidas práticas de sucesso milenar por uma tecnologia que contém riscos (ataques de terceiros, vírus, fragilidade de códigos de programação e obsolescência acelerada e constante, para citar uns poucos), foi e é tarefa temerária, requerendo a prudência do gato que vaga pela borda da banheira.

Atrair e capacitar os notários, profissionais autônomos com independência negocial, usualmente capacitados em Direito e ignorantes dos meios tecnológicos, submetidos aos juízes corregedores de 26 estados e Distrito Federal, com normas e regramentos próprios. Construir uma sólida base tecnológica para os 8.800 cartórios de notas, 6.600 deles com parcos recursos financeiros, integrando-os numa rede conectada e ofertando serviços padronizados, este era e segue sendo o desafio.

Na prática, tínhamos que emular os atos notariais em meio eletrônico e, ao mesmo tempo, buscar ganhos em decorrência dos meios tecnológicos: atendimento remoto, redução de processos, de tempo e de recursos, serviços instantâneos, oferta massificada com atenção à singularidade, pesquisa e oferta de novos atos notariais ou captura de nichos de serviços inusitados decorrentes da nova tecnologia.

Esta postura do notariado brasileiro foi corajosa. Os primeiros passos envolveram estudos e a formação de uma equipe experiente em novas tecnologias que pudessem aliá-las às necessidades da atividade notarial.

A equipe: pessoas qualificadas são indispensáveis

O CNB é uma entidade institucional que representa os notários brasileiros e colabora com as autoridades públicas para a segurança jurídica. Atua com o apoio e junto de suas seccionais estaduais, que são independentes.

Em 2017, a entidade não tinha uma equipe especializada em tecnologia. A diretoria do CNB, junto com as seccionais estaduais e distrital, fixaram os passos necessários para a construção do e-Notariado10:

– Concentrar no CNB as iniciativas de desenvolvimento tecnológico: na época, como era natural, tabeliães e seccionais estaduais desenvolviam projetos que, ainda que meritórios, não buscavam a integração e desenvolvimento da atividade e de todos os notários brasileiros.

– Manter estrutura própria e desenvolver conhecimento para conservar, atualizar e redesenhar permanentemente os aplicativos de tecnologia específicos para a atividade notarial.

– Desenvolver e implementar a Censec 2.0: a Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados, o sistema que gerencia e fornece informações sobre a existência de testamentos, procurações e escrituras públicas de qualquer natureza, inclusive procurações, necessitava atualização, ampliação para outros Estados e mudança de sua operação para Brasília.

– Desenvolver e implementar um modelo de certificação digital para notários: o certificado digital é a assinatura em meio eletrônico. O domínio da tecnologia seria indispensável para qualquer projeto de geração de documentos eletrônicos.

– Desenvolver e implementar um Portal de Contratação: o foco principal do e-Notariado seria a possibilidade de montar escrituras públicas e submeter seus textos para aprovação e assinatura das partes e dos tabeliães.

– Aperfeiçoar a Central de Autenticações de Documentos Eletrônicos, CENAD, a ferramenta do e-Notariado para autenticações digitais de documentos, escrituras e procurações públicas, permitindo a verificação da autenticidade desses documentos.

– Central de cartões de firmas e biometria: os tabeliães de notas tinham a sua riquíssima base documental pessoal dispersa, atomizada em milhares de profissionais. O projeto do e-Notariado pensou a sua integração, agregando os dados biométricos para identificação pessoal e controle sistêmico de falsidades, criando, assim, uma base higienizada de dados.

– Desenvolver e implementar a autenticação de biometria e comportamento: o e-Notariado planejou e implementou a autenticação por biometria ou dado comportamental (como a ação de teclar). A identificação pessoal vai além dos documentos oficiais.

– Desenvolver e gerir um sistema de back-office: os tabeliães brasileiros necessitam um sistema para criar os seus documentos, gerir os atos desde o contato inicial das partes até a final assinatura e complemento dos atos, permitindo a gestão integral do processo.

– Desenvolver e implementar o Protocolo Eletrônico Notarial: o sistema notarial brasileiro sempre foi atomizado. A integração em uma plataforma permite a introdução de uma numeração de protocolo de atos única para todos os cartórios do país, permitindo consultas remotas com segurança.

– Contratar dispositivos de infraestrutura para a era da tecnologia: o CNB, reunindo todo o notariado brasileiro, pode contratar equipamentos e projetos de desenvolvimento de aplicativos robustos, o que não seria viável para um só tabelião.

– Cloud computing, proteção de rede etc.:  a implementação de soluções de integração e conexão com a internet exige o fornecimento de ferramentas periféricas indispensáveis no meio eletrônico.

– Hardware padrão (computador, dispositivos móveis e periféricos): o CNB pode definir e recomendar equipamentos e aplicativos padrões para todos os profissionais interligados, suprindo a carência de conhecimento técnico informático de cada tabelião.

Perseguindo estes objetivos, o CNB começou a montar a equipe de tecnologia já no início de 2017. Foi contratado um profissional para atuar como diretor de tecnologia, Marcos de Paola, e, no início de 2018, agregamos a consultoria de Renato Martini, ex-presidente do ITI, responsável pelo desenvolvimento da ICP-Brasil.11

Os dois, junto à secretária-executiva, Claudia Rosa, e da equipe jurídica, Karin Rick Rosa e Luiz Carlos Weinzenmann, formaram uma equipe enxuta que buscou desenvolver os aplicativos necessários com a contratação de empresas de tecnologia e deram suporte gerencial e jurídico ao projeto. Marcos ficou responsável pelo desenvolvimento dos modelos lógicos, orçamento e contratação do serviço de terceiros; Renato trouxe o conceito, o denominado “barramento”, que vinculava o desenvolvimento dos aplicativos a uma superestrutura lógica que se interconecta facilmente.12

Os primeiros passos

Em 2017, o CNB contratou dois estudos preliminares para fundamentar a ação no meio tecnológico: o primeiro, foi para implementar um hub biométrico notarial e o segundo buscou a análise da viabilidade dos tabeliães atuarem com certificados digitais. Desenvolvemos também o conceito de todo o trabalho, a implementação de uma plataforma com o barramento dos serviços notariais em meio digital. Esta ideia deu origem ao e-Notariado.

No mesmo ano, 2017, o CNB publicou o Manual de Boas Práticas para o Ambiente Tecnológico do Notariado, para que os tabeliães brasileiros tivessem um roteiro e suporte para atender o Prov. 74, do CNJ, que dispunha sobre padrões mínimos de tecnologia da informação para a segurança, integridade e disponibilidade de dados para a continuidade da atividade pelos serviços notariais e de registro do Brasil.13

Neste mesmo ano, visando demonstrar ao Banco Mundial e ao seu Relatório Doing Business a capacidade produtiva do notariado brasileiro em meio digital14, em conjunto com as seccionais do RJ e SP, o CNB desenvolveu o site escriturasimples.org.br. Nele, uma pessoa poderia escolher um cartório e iniciar a elaboração de sua escritura à distância, conduzindo o processo todo remotamente, até o momento da assinatura final, que deveria ser perante o tabelião ou seu escrevente. O Escriturasimples, lançado em 201815, contou com mais de 1.000 tabeliães integrados, mas foi posteriormente desativado pela baixa utilização e pelo fim do Doing Business.

Foi, de qualquer modo, a primeira experiência com a escritura remota, introduzindo padrões de atendimento aceitos por tabeliães de todos os Estados brasileiros.

O consenso político

Ao mesmo tempo que se iniciavam os estudos e desenvolvimento de aplicativos, era necessário integrar o notariado brasileiro no processo, para que os tabeliães conhecessem o trabalho que se desenvolvia, perdessem as fobias tecnológicas e, sobretudo, para que houvesse um razoável consenso sobre a informática e a sua imposição de padrões. Isolados em seus cartórios, ciosos do atendimento a seus clientes, barriga no balcão e o Código Civil sempre à vista, os tabeliães tinham que ser trazidos para o processo. O trabalho com as seccionais estaduais e do distrito federal e constantes palestras em congressos regionais seriam fundamentais para o amálgama.

Ao longo de 2017, a diretoria do CNB convidou as seccionais da entidade para um debate e redação do pedido de regulamentação do e-Notariado. O debate exaustivo, com mais de 11 versões, resultou no documento, aprovado por unanimidade em reunião no Rio de Janeiro, em 27.09.2017. A estrutura normativa do projeto foi apresentada ao CNJ em março de 2018.16 A estas alturas, a entidade já havia promovido o registro do domínio e da marca, em setembro de 2017, garantindo a plena titularidade para o CNB.

Mais tarde, em 2019, ainda no esforço para chamar as lideranças para o conhecimento do futuro e para a coragem em romper paradigmas, o CNB convidou todos os presidentes de seccionais para o workshop sobre a tecnologia e o futuro, em Porto Alegre. O trabalho, com duração de dois dias, apresentou aos dirigentes os estudos e iniciativas mais vanguardistas sobre tecnologia, não apenas no âmbito legal, mas em todo o espectro social.

Os resultados: tecnologia e relações institucionais

O debate e interação com a sociedade e as autoridades, especialmente o Executivo e o Judiciário, foram também cruciais.

Como sempre, os notários carregavam uma carga de preconceito imensa. As empresas de tecnologia temiam que buscássemos o monopólio das atividades de certificação digital e de contratação em meio tecnológico. Obviamente, também buscavam proteger os seus nichos de mercado, temendo a competição de um segmento com tradição milenar nestas áreas.

Ao longo de toda a construção, foram inúmeros os encontros com autoridades como a Casa Civil da Presidência da República, o Instituto de Tecnologia da Informação, o Tribunal Superior Eleitoral, o SERPRO, o DENATRAN e, obviamente, com a Corregedoria do CNJ.

A busca por integração com bases de dados oficiais foi incessante. Inicialmente, o CNB tentou obter junto à Justiça Eleitoral uma integração com a biometria lá depositada, o que foi negado por vedação legal. Estes esforços culminaram no convênio com o Serpro e o Denatran para que os tabeliães pudessem utilizar a base de dados lá existente para a conferência de identidade das entradas de dados dos clientes dos tabelionatos brasileiros.

Em 2018, o CNB assinou importante documento de colaboração com a Casa Civil da Presidência da República, permitindo que os tabeliães brasileiros desenvolvessem o seu projeto de certificação digital. A partir deste convênio, foi também firmado um acordo de cooperação entre o ITI e o CNB,17 iniciando tratativas para o ingresso do notariado na ICP-Brasil. O projeto da entidade envolvia a operação de dois certificados: o e-Notariado off ICP e o e-Notariado ICP-Brasil.

A Autoridade Certificadora do e-Notariado nasceu em 23 de março de 2018, com tecnologia toda da entidade, com os mesmos padrões da ICP Brasil, em HSM18, e publicação de sua primeira DPC, Declaração de Práticas de Certificação.19 Em maio de 2019, já havia 38 tabeliães credenciados como autoridades notariais aptos a emitirem certificados digitais.

Junto com o CNJ, a ANOREG e a ARPEN, o CNB desenvolveu o novo aplicativo para Apostilamento Eletrônico e-App da Haia, que foi doado para o CNJ. Esta modernização do apostilamento foi considerada pioneira e modelo para outros países integrantes da Convenção.

Em maio de 2018, o CNB iniciou estudos para o desenvolvimento de um projeto de big data com o objetivo de agregar as informações obtidas nos atos notariais eletrônicos para estudo e desenvolvimento de novos projetos para o notariado e para fornecer dados e estatísticas à sociedade brasileira.

Também em 2018, desenvolveu o projeto para a Autorização eletrônica para a viagem de menores.20 O trabalho envolveu uma complexa tecitura de desenvolvimento de tecnologia para que pudesse ser aceito pelas companhias aéreas e pela Polícia Federal em seus postos de atendimento nos aeroportos brasileiros. Ao mesmo tempo, tínhamos que manter a Corregedoria do CNJ atenta a todo o trabalho para que a indispensável autorização para implementação ocorresse oportunamente.

Para atender toda a infraestrutura, foi contratado um backup em nuvem garantindo a segurança das informações, que ficam replicadas em ambiente externo. O desenvolvimento de um blockchain fechado, constituído exclusivamente por tabeliães anunciou para a sociedade que a cruz que carregaria o notariado à sua cova, era, na verdade, apenas mais uma ferramenta que auxiliaria o crescimento da atividade. Um verdadeiro plot twist!

O Backup em Nuvem e-Notariado é um serviço de armazenamento de dados, e o Notarchain, o blockchain dos notários.21-22 Essas funcionalidades são serviços que foram integrados à plataforma do e-Notariado. A marca Notarchain foi registrada em nome do CNB em novembro de 2018.23 Naquele mesmo ano, um tabelião do Distrito Federal conduziu pela plataforma a primeira eleição do quinto constitucional através do Notarchain.24-25

No final de 2018, o CNB contratou o desenvolvimento da CENSEC 2.0, uma nova plataforma com código mais atualizado e de propriedade da entidade, permitindo mais facilidade de operação para o tabelião. A Censec 2.0 foi inaugurada em 07.10.2019 na sede de Brasília.

Em janeiro de 201926, o e-Notariado integrou o serviço de autenticação de cópias eletrônicas, permitindo que este serviço milenar, oriundo das públicas-formas, começasse a ser oferecido também em meio digital.27

A partir de abril de 2019, com a plataforma já operacional28, o CNB organizou workshops em diversas cidades: Brasília, Porto Alegre, Florianópolis29, Curitiba30, Recife e Campo Grande receberam os eventos. Para mim, será inesquecível as expressões de incredulidade, surpresa e, algumas vezes, desdém dos tabeliães com a plataforma.

No XXIV Congresso Notarial daquele ano, na Praia do Forte, Bahia, os tabeliães brasileiros e autoridades presentes, como uma senadora e deputados, emitiram os seus certificados digitais gratuitamente, assinando documentos simbólicos. Mais de 220 novos tabeliães foram credenciados como AN, Autoridades Notariais para a emissão do certificado off ICP da plataforma. O e-Notariado estava plenamente operacional e os tabeliães emitiam seus certificados com facilidade, entendendo o processo e, portanto, aceitando a nova tecnologia e a transformação da atividade. A incredulidade e desconfiança que havia nos encontros regionais foram substituídas pelo otimismo e vibração com a nova plataforma de serviços.

Em dezembro de 2019, o CNB lança o Manual da Lei Geral de Proteção de Dados, um guia para que os tabeliães de notas brasileiros atendam a lei da LGPD.31

Proteção legal

Ao longo deste processo de inovação, era imprescindível garantir a titularidade dos domínios e marcas nos órgãos competentes, o INPI e o Registro.br. Foram registradas as marcas do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal, Escritura Simples, Notarchain e e-Notariado.

Um empurrão ao futuro: a pandemia do Covid-19

O texto original da proposta de regulamentação do e-Notariado foi precedido, como disse, de longo e profícuo debate pelos tabeliães e seccionais do CNB. Apresentada ao CNJ, a proposta foi objeto de análise e discussão por todas as Corregedorias de Justiça dos Estados e Distrito Federal.

A disrupção da atividade, permitindo o atendimento remoto, dá umas caneladas em costumes e práticas milenares da atividade, como o atendimento físico presencial e a assinatura de próprio punho.

A proposta de regulamentação do CNB pensou em preservar os princípios notariais, adotando práticas consagradas na sociedade, como a assinatura digital e a plataforma de contratação. Buscou também atenção à territorialidade do tabelião, que sempre atendeu a sua comunidade e é proibido, por lei, de lavrar atos fora dela; por isso, a normativa fixou base territorial para atos que envolvam imóveis e critérios de domicílio das partes para atas e procurações.

Alguns tabeliães debateram se o princípio da imediação, que permite o contato direto do tabelião com a parte, com a verificação da autenticidade de sua pessoa, seus documentos e, ao final, da manifestação da vontade livre e soberana, estaria mantido com o uso da plataforma remota.

A verdade é que, ao longo da segunda metade do século XX, o atendimento já vinha se realizando primordialmente pela forma remota, com a comunicação ocorrendo por telefone, depois por fax e finalmente pela via telemática. A imediação ocorria quase sempre no momento da assinatura. Por isso, a disrupção exigiu a quebra deste paradigma. Ora, toda a preparação do ato mais os elementos contemporâneos de identificação e expressão da vontade, dão igual segurança de autenticidade para a atividade.

Os elementos contemporâneos foram indicados no pedido inicial do CNB ao CNJ. O e-Notariado se propõe a garantir:

– Confidencialidade: para que o acesso às informações seja efetuado somente por pessoas autorizadas.

– Disponibilidade: para que as informações estejam disponíveis sempre que necessário para acesso dos usuários autorizados.

– Autenticidade: para garantia da identidade de um usuário ou sistema com que se realiza uma comunicação.

– Integridade: para que a informação seja mantida em seu estado original e proteção contra alteração indevida, intencional ou acidental na guarda ou transmissão.

– Não repúdio: para garantir que um autor não possa negar falsamente uma manifestação ou documento de sua autoria. Isto é condição necessária para a validade jurídica de documentos e transações.

Ademais, os sistemas informáticos devem prover:

– Interoperabilidade: os sistemas e atos notariais devem possibilitar a comunicação com outros sistemas e operações, permitindo os ganhos de produtividade e segurança. Como exemplo, cita-se a interação com os órgãos corregedores, com as fazendas públicas, com os serviços registrais.

– Fiscalização: os sistemas devem possibilitar a auditoria e fiscalização remota e segura, permitindo que a Corregedoria Nacional de Justiça e os demais juízes corregedores possam acessar, verificar e fiscalizar os serviços notariais.

– Preservação a longo prazo: os atos notariais lavrados são públicos, sendo o notário detentor e responsável pelas informações enquanto titular da delegação. Os dados devem ser produzidos de forma a manterem-se perenemente.

Todo este arcabouço de segurança, tecnológica e jurídica, está contemplado no e-Notariado.

A pandemia do Covid-19 começou no Brasil após o Carnaval de 2020. Em abril, o Prov. n. 95, do CNJ, declarou que a prestação dos serviços notariais e registrais eram essenciais reconhecendo que a atividade não poderia ser interrompida durante o período de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), em decorrência da infecção humana pelo novo Coronavírus (Sars-Cov-2).32

O provimento autorizou a prática de meios remotos de atendimento, como o uso do Whatsapp e Skype, e a recepção de documentos eletrônicos em padrão PDF-A ou XML que deveriam ser assinados com o certificado digital ICP-Brasil. Também nestes formatos poderiam ser emitidos os documentos notariais e registrais, como traslados e certidões.

Antes dele, em 30.03.2020, o CNB, por sua nova diretoria, apresentou uma proposta de regulamentação substitutiva ao texto anterior, pedindo urgência na aprovação para que os tabeliães brasileiros pudessem atender remotamente durante a pandemia. Na nova proposta, foi introduzido um sistema de sala de reunião através de videoconferência, cujo resultado fica gravado na plataforma para evidência futura de cumprimento dos requisitos necessários ao ato notarial.

A proposta sofreu oposição de uma entidade de Santa Catarina. Contrapondo-se a ela, o CNB apresenta em 16.04.2020 uma nova minuta de regulamentação. Esta proposta foi aceita e, em 26.05.2020, a CGJ do CNJ edita o Prov. 100/2020, que dispunha sobre a prática de atos notariais eletrônicos utilizando o sistema e-Notariado, cria a Matrícula Notarial Eletrônica-MNE e dá outras providências.33

Consolida-se, com o provimento 100, a formatação normativa do e-Notariado.

Passado, presente e futuro, sempre inovar

Nada substitui a conexão humana. O contato pessoal é o que nos aproxima e nos fez Civilização. As ferramentas para a conexão são sempre necessárias, seja o código do idioma ou o do software, sejam os cifrados sinais de fumaça, ou a criptografia. O uso dessas ferramentas, qualquer delas, pelo Notariado, com a prudência e o estudo técnico que a profissão exige, só nos eleva como servidores do povo e da sociedade.

Ainda este ano, o e-Notariado superará mais de um milhão de atos protocolares realizados em meio eletrônico. O certificado notarial, oferecido gratuitamente, tem sido largamente aceito pelas pessoas que o utilizam em seus telefones celulares. A plataforma está consolidada com estatística irrefutável do sucesso.

Sempre haverá muito a fazer. São exemplos do dever de casa, o desenvolvimento do sistema de back office com ferramentas de gestão, a introdução da Inteligência Artificial, a IA, na geração, produção e gestão posterior dos atos notariais.

Como qualquer software, o e-Notariado está em constante evolução. A aplicação prática motiva aprimoramentos. Notários não gostam muito de mudanças constantes. Acostumemo-nos. A vida contemporânea nos terá integralmente impulsionados no invisível wireless.

O trabalho de uma geração de notários brasileiros está consagrado no e-Notariado. É imprescindível honrá-la com a lembrança de todos os últimos dirigentes do CNB,34 responsáveis, cada um, por pequenos avanços, pela participação política ativa e desprendida.

Louis D. Brandeis, juiz da Suprema Corte norte-americana no século XX, disse que a maior parte das coisas que valem a pena fazer no mundo foram declaradas impossíveis antes de serem feitas.35

O notariado brasileiro foi lá e fez.


1 Pela novela The Life of Reason.

2 John Dalberg-Acton.

3 “Roma não foi construída em um dia” é expressão cunhada por Filipe da Alsácia no século XII.

4 Bower, Joseph L. & Christensen, Clayton M. (1995). “Disruptive Technologies: Catching the Wave” Harvard Business Review, January-February 1995.

5 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 18h01.

6 “A questão não é se os cartórios vão desaparecer, mas quando”, acessado em 08.09.2023, às 18h10.

7 Uma das dezenas de matérias jornalísticas da época, em 2016, por todas, acessada em 08.09.2023, às 17h15.

8 Juntamente com o autor, Danilo Alceu Kunzler, Emanuelle Perrota, Filipe Andrade Lima Melo, Otavio Guilherme Margarida, Walquiria Maria Rabello, Carlos Firmo, Hercules Benício, Ana Paula Frontini, Ângelo Volpi Neto, Maxwell Pariz Xavier e Fabio Zonta.

9 Explico: o papel e a escrita, primeiro manual, depois impressa, moldaram a civilização e o notariado, em particular, desde a sua fundação com o Código de Justiniano, no ano 536, renovada em nossa tradição portuguesa com o regulamento de D. Diniz, em 1215. Como, agora, confiar em códigos e programas feitos por terceiros?

10 Apresentados no XI Encontro Notarial e Registral do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, no dia 28.04.2017.

11 Marcos de Paola e Renato Martini seguem colaborando com o CNB até hoje.

12 Este modelo impediu que fossem aproveitados aplicativos já desenvolvidos pelas seccionais, gerando certo atrito.

13 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023 às 17h23.

14 O país que tivesse uma plataforma digital de contratação somava pontos no relatório.

15 A data exata do lançamento da plataforma é 28.12.2018.

16 O pedido de providência de n. 0001333-84.2018.2.00.0000 foi aprovado e resultou no Prov. 100, em 26.05.2020. O processo completo pode ser baixado aqui.

17 DOU 20/08/2019. Processo n.º 00100.000012/2019-24. Vigência: início: 15/08/2019 – término: 60 meses. Título do Projeto: Acordo de Cooperação Técnica entre o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI e o Colégio Notarial do Brasil Conselho Federal – CNB-CF, com a intervenção da união, por intermédio da Casa Civil da Presidência da República. Objeto: O presente Acordo de Cooperação Técnica – ACT tem por objetivo viabilizar a cooperação técnico-normativa entre o ITI e o CNB-CF, com vistas ao aprimoramento e compatibilização do sistema e-notariado, mantido pelo CNB-CF e, assim, usado exclusivamente pelo notariado brasileiro, apoio técnico para sua implantação como uma Autoridade Certificadora da ICP-Brasil, bem como a realização de estudos para a possível utilização da base biométrica e biográfica mantida pelo e-notariado de forma compatível aos padrões da ICP-Brasil. Partícipes: pelo ITI, MARCELO AMARO BUZ, Diretor-Presidente, pelo CNB-CF, PAULO ROBERTO GAIGER FERREIRA, Presidente e pela Casa Civil da Presidência da República, ONYX DORNELLES LORENZONI, Ministro-Chefe.

18 Os módulos de segurança HSM (hardware security modules) são dispositivos de hardware sólidos e resistentes a manipulações que asseguram os processos criptográficos gerando, protegendo e administrando as chaves utilizadas para encriptar e desencriptar dados, e criar assinaturas e certificados digitais. Os HSM se provam, validam e certificam com padrões de segurança mais elevados.,

19 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h20.

20 PP 00111315-25.2018.2.00.0000 autuado pelo Corregedor Nacional de Justiça em 06.02.2019, e que resultou no Prov. 103/2020, criando o módulo do e-Notariado para a emissão da Autorização Eletrônica de Viagem.

21 Disponível aqui.

22 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h35.

23 A data exata de lançamento é 09.08.2019.

24 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023 às 17h33.

25 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h34.

26 A data exata é 07.01.2019.

27 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023, às 17h23.

28 E-notariado promete revolucionar a prestação de serviços dos cartórios, artigo de 17.06.2019, acessado em 08.09.2023, às 17h30.

29 Tabeliães de Santa Catarina poderão aderir ao e-notariado durante Congresso Regional da Anoreg/SC, notícia de 28.06.2019, acessado em 08.09.2023, às 16 horas.

30 Gazeta do Povo – 02.08.2019 – tutorial sobre o e-Notariado, acessado em 08.09.2023, às 16h05.

31 Disponível aqui.

32 Disponível aqui, acessado em 08.09.2023 às 17h40.

33 O Prov. 100 CNJ e todos os demais, anteriores a maio de 2023, foram revogados e seus textos consolidados no Prov. 249/2023.

34 Tullio Formicola, Ângelo Volpi Neto, João Figueiredo Ferreira, Índio do Brasil Artiaga Lima, José Flávio Bueno Fischer, Ubiratan Pereira Guimarães e suas diretorias.

35 “Most of the things worth doing in the world had been declared impossible before they were done.”

Fonte: Migalhas

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