Como usar o blockchain para projetos de interesse público?
24 de fevereiro de 2017Por Ronaldo Lemos
Blockchain é a palavra do momento. A tecnologia tem sido recebida com grande entusiasmo pelo setor privado. No entanto, é possível ir além. Quais são as implicações dessa nova importante tecnologia para o interesse público? Neste artigo, exploramos algumas possibilidades.
Primeiramente, um breve contexto
Já não é mais novidade. Vivemos um período de profundas mudanças em relação à “confiança”. As pessoas têm perdido a confiança nas instituições, no setor privado e até mesmo na democracia. Existe uma uma demanda imensa por novas formas de se estabelecer confiança, seja ela em governos, empresas e até mesmo nas relações pessoais.
A blockchain é uma tecnologia que surgiu exatamente para isso: gerar confiança, de forma distribuída.
Nosso modelo de confiança atual é baseado primordialmente em sistemas centralizados ou descentralizados. Se você quer saber quanto Alice tem em sua conta bancária, por exemplo, você precisa perguntar a uma instituição financeira — e confiar no que ela disser. A blockchain, no entanto, permite a criação de uma nova forma de confiança que não é centralizada (como no caso dos governos) nem descentralizada (como no caso do sistema financeiro global). É um modelo distribuído; e é por isso que esse sistema foi chamado de “confiança sem confiança”, ou “trustless trust”, no original em inglês.
Para fazer isso, a blockchain usa criptografia para assegurar a criação de um enorme banco de dados totalmente protegido contra adulteração (mesmo por seus operadores individuais). Gosto de dizer que ela é pode ser descrita como um banco de dados, distribuído, capaz de produzir consenso e assegurar a integridade e unicidade das informações que nela são inseridas. Uma aplicação natural para isso é a criação de moedas virtuais, como é o caso do Bitcoin. Para saber quanto um usuário hipotético possui de saldo em Bitcoins, não é preciso perguntar a nenhuma instituição intermediária, nem a nenhum banco. Pergunta-se à própria rede, que concorda unanimemente sobre a quantidade de Bitcoins que esse usuário possui.
Ao criar uma camada de consenso distribuído, a blockchain tem potencial para reconfigurar nossos sistemas de confiança em muitas outras áreas além do sistema financeiro. Uma das formas da blockchain criar consenso é por meio de um processo chamado “prova de trabalho” (proof of work), que consiste em resolver um desafio matemático, que é então demarcado no tempo, “assinado” criptograficamente e distribuído ao longo de toda a rede, o que impede sua adulteração.
E quais são suas aplicações?
Como disse acima, gosto de pensar na blockchain como um grande banco de dados. Ela armazena pedaços de informação interligados entre si, em blocos (daí o nome); no entanto, essa informação é armazenada de forma distribuída. Toda a rede “concorda” com aquela informação, gerando assim consenso sobre ela em toda parte. Essas informações são imutáveis. A probabilidade de adulteração da blockchain é praticamente zero. Além disso a integridade e unicidade das informações é assegurada em cada bloco.
Esse modelo de “blockchain” pode assumir muitas configurações técnicas e formatos operacionais nos dias de hoje. Em nossa visão, as blockchains mais promissoras hoje são aquelas desenvolvidas por comunidades abertas e mantidas como um projeto open source, descentralizado, transparente e auditável.
No entanto, tecnologias nunca são neutras, e a blockchain não é nenhuma exceção. Ela foi originalmente concebida como uma tecnologia financeira, aplicada na criação do Bitcoin. Assim, não chega a ser surpreendente que os esforços em torno do seu uso hoje sema majoritariamente para a promoção de ganhos econômicos. Isso é possível, por exemplo, por meio dos ganhos de eficiência promovidos por ela, ou ainda, pela redução dos custos de transação. Ela também desafia o papel dos intermediários nas mais diversas áreas, especialmente quando este intermediário é um “depositário de confiança” que se organiza de forma centralizada.
Assim como protocolos que permitiram a criação da internet como a conhecemos hoje, como o TCP/IP, a blockchain é também uma tecnologia livre e aberta, que não pertence a ninguém nem foi “patenteada” por seus criadores. Ao contrária, ela se tornou uma tecnologia aberta para o uso por parte de qualquer pessoa. Por isso mesmo ela se converteu em uma tecnologia fundacional, tal como foi o TCP/IP, ou ainda, a linguagem HTLM que originou a World Wide Web (WWW). Por essa razão, a blockchain tem propriedades qu podem ser descritas como “generativas”, tal qual a Internet. Por isso, acredito que essa tecnologia pode levar ao surgimento de muitas aplicações de interesse público. Dentre elas, a possibilidade de votar pela internet, plataformas online de gestão de orçamentos participativos, ou ainda, um novo conjunto de ferramentas de organização social. Tudo isso terá como aliado a poderosa tecnologia de “provas criptográficas”, transformando o modo como entendemos e vivenciamos a confiança.
A possibilidade de propor um projeto de lei pela internet no Brasil
Vamos agora pensar em uma aplicação importante e imediata para a blockchain no Brasil, que atende um anseio geral do país com relação ao interesse público. A Constituição brasileira de 1988 criou um mecanismo de democracia direta que funciona da seguinte forma: se 1% dos eleitores assinarem uma petição em apoio a uma nova lei, o Congresso brasileiro deve reconhecê-la como um projeto de lei oficial proposto pelo povo e votá-lo como tal. Hoje, seriam necessárias cerca de 1,5 milhão de assinaturas para isso. No entanto, a única forma que existia para coletar essas assinaturas era o papel. Sabemos que o papel, como tecnologia para produção de confiança, tem inúmeras limitações. Ele pode ser facilmente adulterado. Ou ainda, ninguém sabe ao certo se a pessoa que assinou aquela folha é mesmo quem ela diz ser. Em face dessas limitações “tecnológicas” do papel, não é surpresa que, desde 1988, esse mecanismo de democracia direta não foi usado nem sequer uma vez da forma como ele foi previsto na Constituição. Nos casos em que houve a mobilização popular, mais de 1,5 milhão de assinaturas foram colhidas (como é o caso do projeto da “Ficha Limpa” ou das “10 Medidas Contra a Corrupção”), maso projeto de lei não foi aceito pelo Congresso como sendo “do povo”.
Foi preciso um deputado se voluntariar e propor ele mesmo o projeto, em seu próprio nome. A razão para isso não é egoísmo nem autopromoção (ou pelo menos, não é majoritariamente essa razão). A razão é que é praticamente impossível auditar 1,5 milhão de assinaturas colhidas em papel. A chance de fraude existe e o trabalho de conferência é grande demais.
É aí que entra a blockchain. E se as assinaturas pudessem ser coletadas digitalmente e registradas na blockchain, sendo já pré-auditadas no momento da coleta? Pois é exatamente isso que o Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio) está construindo no momento.
Estamos desenvolvendo uma aplicação baseada na blockchain que permitirá auditar desde o início a identidade dos eleitores, usando para isso fatores múltiplos (incluindo o número de seu CPF, título de eleitor e até mesmo seu número de celular). Com isso, o eleitor poderá expressar formalmente seu apoio a um projeto de lei de iniciativa popular, tudo isso por meio de seu telefone celular conectado à internet. Essa ferramenta permitirá à sociedade brasileira propor diretamente no Congresso Nacional (ou nas Assembleias Legislativas dos Estdos, ou ainda, nas Câmara de Vereadores) seus projetos de lei impulsionados pela mobilização social. Quem pediu ao ITS para que desenvolvesse esse aplicativo foi o jurista Márlon Reis, responsável pela articulação do famoso projeto de lei da Ficha Limpa no Brasil. Márlon acredita que esse aplicativo será um novo passo para melhorar os processos de mobilização social para a proposição de leis de iniciativa popular. É claro que o papel continua importante, especialmente nas muitas comunidades do Brasil que não têm acesso à internet. No entanto, a tecnologia permitirá um enorme salto de inclusão e segurança.
A blockchain é perfeita para esta finalidade. Ela cria um registro único e imutável dessas assinaturas. Esse registro é facilmente auditável, diferente do papel. Devido à blockchain, conjugada com outros mecanismos de certificação que estamos adotando, a probabilidade de fraude é próxima a 0%.
Veja só o poder dessa ideia. Já disse que para propor uma lei no Congresso Nacional seria necessário obter 1,5 milhão de assinaturas. No entanto, para propor uma lei estadual ou municipal, os números são muito menores. Em muitos estados, bastaria 60 mil assinaturas para a proposição de um novo projeto na Assembleia Legislativa. Na maioria das cidades do Brasil, seriam necessárias apenas 300 assinaturas para a introdução de um projeto de lei na Câmara dos Vereadores.
Isso pode mudar significativamente o perfil da democracia no Brasil, estabelecendo uma nova forma de diálogo entre cidadãos e representantes. Esses projetos de lei, obviamente, não são aprovados automaticamente. Eles devem ser votados como qualquer outro projeto de lei. No entanto, a simples possibilidade de apresentar um projeto de lei em nome do povo no Congresso (ou em outras casas legislativas estaduais e municipais) pode levar a uma nova e promissora relação entre a sociedade e os governos. Esse foi o desejo da Constituição de 1988. Agora existe a tecnologia para concretizá-lo.
Para terminar: Outras aplicações de intresse público
Uma das razões para se entusiasmar com as tecnologias baseadas na blockchain é que elas são relativamente baratas. A blockchain oferece uma oportunidade de inovação real, não só no campo do setor privado, como vem acontecendo até agora, mas no setor público. Ela é uma ferramenta perfeita para todo e qualquer empreendedor social interessado em mudar para melhor o Brasil.
Esse é apenas o começo. As possibilidades de uso da blockchain vão ainda além. Abaixo segue uma lista de outras aplicações dessa tecnologia no campo do interesse público que podem ser desenvolvidas:
- Permitir estabelecer identidades digitais on-line, o que facilitará enormemente a ideia de governo eletrônico;
- Criar plataformas de votação eletrônica;
- Contribuir para a inovação no campo dos registros públicos e do sistema notarial;
- Contribuir para a inovação no campo dos registros de imóveis;
- Aumentar a transparência e responsabilização no financiamento dos partidos políticos, reduzindo as possibilidades de caixa dois e mapeando o uso e a distribuição do fundo partidário;
- Facilitar e tornar mais transparentes processos licitatórios;
- Criar novos sistemas para licenciar, gerenciar e coletar royalties para música e outras formas de propriedade intelectual, favorecendo os artistas e criadores e dando mais transparência aos intermediários existentes hoje;
- Gerar certificados de origem para bens físicos, como madeira, impedindo a comercialização de madeira de áreas de desmatamento ilegal;
- Criar um novo paradigma de segurança e novas modalidades de serviços para aplicações de Internet das Coisas (IoT);
- Criar nova camada de certificados para a agroindústria, agregando valor ao produto brasileiro e promovendo inovação e sustentabilidade no agronegócio;
- e muitas outras aplicações.
A blockchain, é claro, não é uma panaceia capaz de resolver todos os problemas do planeta. Se olharmos atentamente, essas possibilidades são apenas um pequeno passo. No entanto, um passo muito promissor. Trata-se de uma ferramenta que vai além da tecnologia, produzindo um impacto real na sociedade e nos modos de vida. Em outras palavras, a blockchain é uma ótima ferramenta de design (ou redesign) institucional.
Há muitas razões para se debruçar sobre as possibilidades da blockchain que vão muito além da possibilidade de se gerar valor, cortar custos ou promover eficiência econômica. A principal razão é a possibilidade de criação de novas práticas sociais e institucionais que melhorem o mundo em que vivemos hoje, com mais transparência, responsabilidade, participação e menos corrupção.
Há muitos pioneiros trabalhando com a blockchain simplesmente para gerar mais lucro. E não há nenhum problema nisso. No entanto, precisamos de mais gente trabalhando com as capacidades dessa tecnologia também para o interesse público. Essas pessoas podem facilmente se tornar fundamentais para o aperfeiçoamento institucional do país.
* Por Ronaldo Lemos, advogado, sócio do escritório PNM Advogados coordenando a área de tecnologia, mídia e internet e Gabriel Aleixo, líder do projeto Blockchain Hub no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Janeiro (ITS Rio)
Fonte: LinkedIn