Após 16 anos de projeto, tabelião do Rio Grande do Sul cria primeiro cartório digital do Brasil e espera revolucionar a forma com que as pessoas usam os serviços notariais, por um mundo sem burocracia
Revista Locaweb – Leo Alves / Fotos: Luis Martinkoski
Basta ter de ir ao cartório para dar aquela comichão. Quase ninguém gosta. O cenário já é conhecido: um balcão grande, um contador de senhas, algumas cadeiras que, independentemente da hora do dia, sempre estão ocupadas e uma fila longa. Muito longa. Do outro lado do balcão, funcionários e tabeliães repetem exaustivamente os movimentos de carimbar, etiquetar, copiar e arquivar documentos, que sempre são guardados em enormes arquivos e prateleiras.
Com disposição para deixar essa imagem para trás, o primeiro cartório digital do Brasil, Tabelionato.org, foi lançado em 2016 no Rio Grande do Sul. Quem o acessa pode realizar diversos serviços notariais sem a necessidade de enfrentar filas nem gastar com transporte e gasolina. Todo o mecanismo rola pela internet e tem como base a certificação digital, que permite a assinatura virtual dos documentos. Trata-se de uma iniciativa do 1º Tabelionato de Notas de Porto Alegre (RS), que também conta com um espaço físico para atender o público.
Ao menos por enquanto.
As propostas inovadoras no setor foram implementadas por Ayrton Bernardes, que atua há 27 anos na área. Formado em direito, cursou também engenharia civil, mas não concluiu essa graduação e encontrou no mundo das leis a sua profissão. Paralelamente, o gosto pela tecnologia sempre o acompanhou desde os tempos em que arriscava algumas programações em Fortran e Cobol, ao ponto de levá-lo a pesquisar novas formas de melhorar o seu trabalho.
“No cartório, eu vivia travado em relação à ausência de tecnologia e não aguentava mais aquilo; precisava inventar algo que não dependesse de carimbos”, afirma o tabelião. Disposto a mudar essa situação, encontrou nas etiquetas a solução para o problema.
“Quem já precisou autenticar algum documento em cartório conhece as etiquetas com holografia. Eu as inventei entre 1996 e 1998 e tenho até o registro no Instituto de Propriedade Industrial (INPI), que atesta a criação”, conta. Hoje o Brasil inteiro usa esse tipo de etiqueta e, graças a ela, a recorrência aos carimbos vem diminuindo consideravelmente.
A motivação de Ayrton para desenvolver as etiquetas, porém, não era apenas diminuir o número de estampadas na mesa ao longo do dia como também resolver outro problema comum em cartórios: a falsificação. Infelizmente, vivemos uma situação grave. Há muita pirataria no Brasil. Aprendi isso quando era escrevente e tinha de realizar os atos de reconhecimento de firma. Sempre era chamado em uma delegacia para explicar por que eu reconheci algum documento. Quando via, o problema em questão é que um carimbo falso havia sido usado”, relembra.
Embrião digital
Criar e inventar a etiqueta com holografia não foi o bastante para o tabelião. Ayrton resolveu dar um passo maior e, em meados de 1999, especializou-se em certificação digital. “Naquela época, esse era um assunto novo, mas hoje já existem mais de sete milhões de pessoas que contam com um certificado desse tipo”, afirma. A tecnologia consiste em uma espécie de carteira de identidade virtual, cuja função é ‘assinar’ documentos eletrônicos. “É uma ferramenta que serve como identificação e, com isso, elimina a necessidade de caneta dentro de qualquer ambiente, porque tudo é feito digitalmente”, explica Ayrton.
Todos esses flertes com a tecnologia fizeram nascer em Ayrton a ideia de criar um cartório digital. No entanto, demorou 16 anos para alguém acreditar no projeto e ajudar a desenvolvê-lo. “Foi então que encontrei dois parceiros para colocar tudo em prática: a Safeweb, que é uma distribuidora de certificados digitais, e a Sky Informática, que tem um sottware de gestão de tabelionatos no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, presente em 600 cartórios”, declara Ayrton. “Há cerca de dois anos começamos a conversar com a Safeweb. Eles têm uma boa equipe de técnicos e cientistas da computação e toparam entrar no projeto. Já a Sky é parceira de longa data”, explica o projetista do cartório digital.
Parceria especializada
Montar o primeiro cartório digital do País era um desafio gigantesco para Ayrton e as empresas envolvidas. Por isso, a presença de especialistas era fundamental para tocar o projeto. Em atividade desde 1991, a Sky Informática lida apenas com tabelionatos e desenvolve tecnologias para os profissionais da área. Em 1993, a empresa criou e instalou o sistema ‘Notar’ no primeiro cliente. A partir daí, passou dez anos desenvolvendo produtos periféricos para atender a demanda do mercado. “Já no ano 2000, com o aumento da necessidade de informatização, passamos a trabalhar fortemente na criação de novos softwares. Daí, para incorporar a ideia do cartório digital foi um pulo”, conta Paulo Kindel, diretor da Sky Informática.
Assim como Ayrton, Kindel também está envolvido com a vida notarial há muitos anos. “Em 1987, trabalhei no Tabelionato de Notas de Montenegro, como datilógrafo. No ano seguinte, fui estudar informática, curso que concluí em 1994. Durante esse período, saí do cartório e fui trabalhar em empresas de TI, onde adquiri a experiência em programação e análise de sistemas”, conta Kindel.
Mesmo sabendo da dificuldade de iniciar algo tão ousado naquela época, com 20 anos de idade, o atual diretor da Sky Informática uniu as experiências nas duas áreas para criar um sistema para os cartórios. “Enxergamos um nicho até então não explorado e seguimos em frente. Felizmente, deu certo”, afirma.
A empresa gaúcha se dedica apenas ao atendimento de cartórios do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Isso porque entende bem como funciona o processo notarial desses estados e como atuam as empresas locais. Não à toa, oferece atualmente mais de 1.400 tipos de serventias para o setor.
Para garantir o bom desempenho de suas soluções, a Sky Informática adota algumas ferramentas da Locaweb.
Usamos o serviço de hospedagem há mais de oito anos, dos quais quatro estão relacionados a cloudserver”, explica Kindel. “Recentemente, para ter melhor escalabilidade, recorremos também à plataforma Jelastic, serviço que será adotado na maioria dos cartórios de registro de imóveis do Rio Grande do Sul.”
Parceria antiga
Ayrton e Kindel trabalham juntos há mais de 20 anos. Segundo o diretor da Sky Informática, a ideia do cartório digital surgiu bem antes da execução do projeto. “Em meados de 2002, quando fez parte da criação da certificadora DIGITRUST, com objetivo de agregar a tecnologia da certificação digital aos serviços, nossa empresa já vinha integrando alguns cartórios com essas tecnologias”, explica. “Infelizmente, no entanto, o projeto foi descontinuado e a certificadora fechou”.
Isso fez com que a ideia do tabelionato digital fosse adiada por mais algum tempo. “Da minha parte, a dificuldade foi convencer as pessoas de que o projeto era factível e que determinaria o futuro dos cartórios. A Sky Informática, por sua vez, levou mais uns 10 anos para executar todos os projetos, e a Safeweb, aproximadamente dois anos”, relata Ayrton. “Para ser sincero, não tive muita dificuldade na parte técnica, porque contei o tempo todo com uma equipe muito boa. Nosso grande problema mesmo foi convencer as pessoas. Esse foi um trabalho muito árduo.”
Enquanto o projeto do cartório digital não saía do papel, Ayrton tratou de registrar alguns domínios na internet. É por isso que, ao digitar tabelionato.com, cartoriodigital.com e identidadedigital.com, os usuários são redirecionados ao Tabelionato.org. Para essa função, usa o Registro de
Domínios Locaweb
O criador da ferramenta não se baseou em nada que já tenha visto, mas procurou juntar recursos de outros softwares em uma plataforma voltada para as atividades notariais.
“Existem diversos programas que fazem upload e download de documentos no mercado, assim como o de coletas de assinatura. Nós unimos isso em um portal com intervenção de um tabelião para realizar as atividades”, explica. “Quando Thomas Edison inventou a lâmpada, o vidro, o fio e a eletricidade já existiam. Ele reuniu determinados elementos e criou um produto novo. Foi a mesma coisa com o Cartório Digital.”
Como funciona
Após o longo período de desenvolvimento, o cartório digital rodou pela primeira vez em junho de 2016. E agora tem uma nova trilha a seguir. “As pessoas sempre reclamam quando têm de ir ao tabelionato, mas mesmo assim não é fácil mudar certos hábitos”, afirma Ayrton. “Estamos em um processo de ‘evangelização’, culturando o público a usar a ferramenta. Acredito que nos próximos cinco anos tudo vai mudar. Quem usa o cartório físico vai migrar para o digital naturalmente.”
Para usar o serviço, só é necessário ter um Certificado Digital ICP-Brasil, que também é conhecido como e-CPF, válido. Atualmente, os serviços do Cartório Digital servem para assinar contratos, procurações, declarações, autorizações, laudos e exames, atestados, perícias, traduções, insumos e logísticas e fechamentos de câmbio.
Para quem já tem o e-CPF, basta acessar o site do cartório e ir à aba Cartório Digital. Nessa nova página, é preciso clicar na opção de envio do documento para análise. Assim que receber os arquivos, o tabelionato faz a verificação e retorna com os custos do processo. Depois, em um portal independente, o documento é assinado. Isso é feito para seguir as normas de segurança da ICP-Brasil, como forma de garantir a proteção dos dados pessoais.
Até hoje não vi casos de falsificação de documentos digitais, apenas físicos. Ocorre que, quando isso acontece em algo impresso, é fácil notar a fraude, mas praticamente impossível de saber quando e como foi feita. No processo eletrônico, os problemas aumentam significativamente para os falsificadores”, conta Ayrton. “Por outro lado, já sei que, recentemente, os piratas passaram a fabricar etiquetas. É aquela velha história, temos sempre de estar à frente das pessoas mal-intencionadas para, quando chegarem até nós, podermos rastreá-las.”
Do ponto de vista legal, a assinatura digital é reconhecida e válida no Brasil desde 2001, muito antes do Cartório Digital entrar em operação. A Medida Provisória 2.200-2/2001 diz que “documentos assinados digitalmente possuem validade jurídica”. Já a Lei Federal 8.935, de 1994, afirma no artigo 41 que “incumbe aos notários e aos oficiais de registro praticar, independentemente de autorização, todos os atos previstos em lei necessários à organização e execução dos serviços, podendo, ainda, adotar sistemas de computação, microfilmagem, disco óptico e outros meios de reprodução”.
Sustentabilidade e tempo ganho
Mais do que oferecer praticidade ao público, o uso de arquivos digitais nos cartórios resulta em outros benefícios
sociais, como a redução do uso de papéis. Além do lado sustentável, Ayrton enfatiza o ganho de tempo na realização dos serviços. Um exemplo é o procedimento chamado apostilamento de Haia. Desde agosto de 2016, o 1º Tabelionato de Notas de Porto Alegre realiza esse processo. Trata-se de uma espécie de acordo internacional com cerca de 100 convencionados que faz com que um documento assinado em uma nação seja reconhecido legalmente por outra. Antes, os responsáveis por essa tarefa eram o Ministério das Relações Exteriores e os consulados, mas agora alguns tabelionatos credenciados se responsabilizaram por dar entrada na documentação.
“Para obter cidadania em outro país, por exemplo, é usada a apostila de Haia, que nada mais é do que uma anotação que atesta a validade do papel. Antes, tudo isso era feito no papel e o trâmite demorava 60 dias. Hoje, o documento é digitalizado, eu assino e gero a apostila eletronicamente. Em poucos minutos, está pronto e é enviado em tempo real no Conselho Nacional de Justiça, que o legaliza em até 10 minutos. O ganho é absurdo”, declara Ayrton.
Com quase 30 anos na rotina notarial, Ayrton tem usado seus conhecimentos em tecnologia para mudar a relação das pessoas com o tabelionato. Com o primeiro cartório digital do País funcionando, o objetivo do profissional agora é que seu legado seja espalhado pelo Brasil, assim como ocorreu com as etiquetas. Dessa forma, o cenário empoeirado descrito no começo desta reportagem ficará restrito apenas ao imaginário. E a tecnologia, mais uma vez, cumprirá seu papel de facilitar as tarefas diárias das pessoas. Tudo graças a mentes empreendedoras e que não têm medo de inovar. //
Fonte: Revista Locaweb
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