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Blockchain e Bitcoin – Parte IX: Obrigações em Bitcoin e sua exequibilidade

Blockchain e Bitcoin – Parte IX: Obrigações em Bitcoin e sua exequibilidade

21 de maio de 2018

Blockchain e Bitcoin – Parte IX: Obrigações em Bitcoin e sua exequibilidade

Dr. Augusto Marcacini – Colunista CryptoID

Por Augusto Marcacini

Após algumas publicações, em que procurei descrever o cenário fático em que se insere o Bitcoin, passemos a traçar algumas breves considerações de caráter jurídico acerca da criptomoeda, voltando os olhos para questões obrigacionais.

Inicialmente, é sempre bom lembrar alguns fundamentos primários de Direito. Se, na esfera pública, a Administração só pode agir dentro dos limites da lei, na esfera privada impera a máxima segundo a qual o que não é proibido é permitido. Diz a Constituição Federal, como um dos seus mais relevantes princípios, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II, da CF). Isso significa dizer que não é necessária uma lei que autorize comportamentos privados, ou negócios privados. Leigos em Direito, especialmente neste país de fortes tendências burocratizantes, são muitas vezes levados a pensar que para tudo que se queira realizar deve haver uma lei “reguladora”, ou “autorizadora”, específica, mas tal pensamento, como demonstrado à luz desse princípio constitucional, não é verdadeiro.

Na sétima parte desta série, comentei sobre o valor do Bitcoin. Mas, tivesse ou não valor econômico, uma vez que as pessoas despertam interesse em ter Bitcoins, se essa criptomoeda é algo que atrai a vontade de humanos, não há porque negar que possa ser objeto de direito. É um bem, na ampla acepção do termo, e, como tal, pode ser objeto de disputas, ou, enfim, de relações jurídicas.

Tratado como um bem, que pode ser transferido de um sujeito para outro, nada parece obstar a realização e a validade de tais transações. Posso trocar com meu vizinho um vaso da minha sala por um quadro de sua parede. Posso permutar imóveis, ou trocar uma casa por certo número de cabeças de gado. Posso, então, trocar bens variados por Bitcoins, e vice-versa.

Mas, evidentemente, ninguém pode ser obrigado a receber em Bitcoins. A moeda nacional, o Real, teve seu curso forçado afirmado na Lei nº 9.069/1995, e isso significa dizer que não pode ser recusada como pagamento. Meu credor não pode se negar a dar quitação da obrigação que lhe devo, diante dos Reais que eu lhe ofereço em pagamento. Em caso de recusa em receber ou dar quitação do pagamento, há meios judiciais que permitem ao devedor efetuar o pagamento em juízo. Mas o credor, por outro lado, não pode ser compelido a aceitar Bitcoins, ou qualquer outra prestação, ainda que mais valiosa, como substitutos da obrigação específica que foi pactuada (art. 313, do Código Civil).

Enquanto fruto de mútuo consenso, porém, não parece haver qualquer empecilho à realização de negócios à vista em Bitcoins. Se o restaurante aceita trocar uma refeição por Bitcoins, ou se aceito essa criptomoeda em pagamento de um parecer jurídico, não parece haver empecilho legal a tais negócios.

Uma grande nuvem, contudo, parece encobrir as consequências jurídicas de um contrato a prazo, que preveja uma transferência futura de Bitcoins. Não estou afirmando que o contrato seja ilegal, pois, se espontaneamente cumprido na forma e modo previstos, entendo que não caberia ao pagador exigir a restituição das moedas, a invalidação do contrato ou a restituição das coisas ao seu estado anterior. Mas tenho dúvidas quanto á exequibilidade forçada desse contrato, em caso de não cumprimento voluntário.

O Código Civil contém disposição vedando o pagamento em outras unidades de conta. Mas o texto legal contém uma sutileza, ao falar em moeda estrangeira. Diz o art. 318 dessa lei: “São nulas as convenções de pagamento em ouro ou em moeda estrangeira, bem como para compensar a diferença entre o valor desta e o da moeda nacional, excetuados os casos previstos na legislação especial”.

Segundo a boa exegética, nem sempre lembrada ou aplicada, regras restritivas de direitos não podem ser interpretadas de forma ampliativa. Se entendermos por moeda estrangeira o meio circulante oficial de algum país, entendo que não se pode enquadrar o Bitcoin nesse conceito. Mesmo sua conceituação como moeda já é passível de controvérsias, embora eu já tenha dito, na sexta parte desta série de ensaios, que esse parece ser o conceito mais próximo, dentre as coisas conhecidas, em que se possa encaixá-lo.

De qualquer maneira, a jurisprudência nacional tem admitido a validade de contratos em moeda estrangeira, baseando-se no chamado princípio da conservação dos negócios jurídicos (art. 184, do Código Civil), deixando que a disputa se restrinja ao quanto se deve pagar, isto é, a controvérsia acaba recaindo somente sobre a data em que se fará a conversão pela taxa de câmbio, que por sua vez reflete no quanto será pago em moeda corrente nacional.

Pela mesma ótica, uma obrigação contratada em Bitcoins haveria de ser admitida como válida, mas o pagamento exigível haveria de ser feito em Reais. Uso aqui a expressão pagamento exigível porque um pagamento (e recebimento) consensual feito em Bitcoins simplesmente escaparia de qualquer controle estatal e, espero, não seria posteriormente invalidado. Entretanto, uma obrigação futura nessa exótica moeda esbarraria nos muitos entraves legais à autonomia da vontade em matéria contratual, como as limitações que a lei brasileira impõe à livre adoção de critérios de correção monetária. Considerando decisões de nossos tribunais em matéria de contratos em moeda estrangeira, é de se antever que a conversão da obrigação fixada em Bitcoin para a moeda nacional geraria muitas controvérsias. Diante das restrições à liberdade de pactuar critérios de atualização monetária, estabelecidas tanto no Código Civil, no já citado art. 318, como na Lei nº 9.069/1995, é de se antever que há grande probabilidade de a questão ser decidida em juízo de modo diverso do que consta no contrato.

Seria de se esperar que, ao menos naqueles negócios em que o Bitcoin é o objeto principal do contrato, fosse respeitada a vontade pactuada e determinado o seu cumprimento específico. Refiro-me, aqui, aos “depósitos” em Bitcoins junto a entidades corretoras e intermediadoras, negócios que normalmente são feitos para fins de negociação da criptomoeda no mercado. Quem guarda Bitcoins alheios haveria de restituí-los especificamente, ou, na sua falta, o valor em dinheiro correspondente. A ver como o Poder Judiciário nacional trataria uma questão dessas, se e quando vier às barras dos tribunais.

Além dessas questões de ordem jurídica, não podemos deixar de considerar questões puramente práticas relacionadas à exequibilidade, ou à efetividade, de obrigações pactuadas em Bitcoins ou de eventuais decisões judiciais incidentes sobre essa criptomoeda.

Caso se entenda cabível obrigar o devedor a adimplir a obrigação específica, contratada em certo número de Bitcoins, é de se perguntar como fazer para dar cumprimento a uma decisão nesse sentido.

Primeiramente, é difícil, beirando o improvável, demonstrar precisamente que algum sujeito seja titular de ativos em Bitcoin. Como apontei em textos anteriores desta série, embora o “livro caixa” que registra as transações seja público, as “contas correntes” em Bitcoins estão ali registradas em “nome” de uma chave criptográfica. Se tal chave não guarda qualquer vínculo com pessoas, é praticamente impossível assegurar que o devedor tenha Bitcoins no seu patrimônio, ou que uma dada conta registrada na escrituração pública seja mesmo sua. Tal descoberta dependeria do concurso de outras evidências e elementos de prova, que permitissem um cruzamento de informações da blockchain com, por assim dizer, o “mundo físico” dos negócios.

Mesmo que seja possível identificar – seja lá por que meios inusitados que o caso concreto apresente – a titularidade dos Bitcoins, não há como ordenar a transferência desses ativos. Façamos a comparação com uma conta corrente bancária: é possível e muito frequente, nesses casos, ordenar ao banco depositário que bloqueie os valores e os entregue à autoridade judicial. Na última década, isso foi automatizado em nosso país e se tornou um meio bastante eficiente de constrição judicial, por meio do sistema informático Bacen-Jud.

No caso do Bitcoin, entretanto, não há uma entidade a quem encaminhar essa ordem. Ninguém, simplesmente ninguém, tem o poder de fazer transferências na blockchain, a ponto de retirar valores de uma conta alheia e transferi-los para outra conta. Somente com o uso da chave criptográfica de assinatura da própria conta é possível transferir os valores escriturados na blockchain. Também não há como congelar os valores, impedindo-os de sair de uma dada conta. Quem detenha a chave dessa conta pode a qualquer momento dissipar os saldos, transferindo-os para outras contas.

Assim, apesar de entender que essas obrigações acima mencionadas são juridicamente válidas (embora me pareça impossível prever como o Judiciário decidiria tais questões), é forçoso reconhecer que são especificamente inexequíveis coativamente.

Essas mesmas considerações de cunho prático se aplicam à questão da penhora de Bitcoins, em execução de outras obrigações, ou de sua apreensão judicial, na execução de obrigação específica de dá-los em pagamento. Seja lá o que for o Bitcoin, a sua essência, por si só, não impediria a penhora. Em tese, excluído o rol de bens impenhoráveis, quaisquer direitos, de qualquer natureza, podem ser objeto de penhora. Embora não haja um rol legal definindo o que pode ser penhorado – o rol existente é negativo, indicando quais são os bens impenhoráveis – a norma que prevê a lista de preferências à penhora (art. 835 do CPC) é encerrada com a mera referência a “outros direitos”. Não há, portanto, nenhum óbice jurídico à penhora de quaisquer bens que tenham valor econômico, excluída a já mencionada relação de impenhorabilidades e, também, a situação eminentemente prática prevista no art. 836 do CPC, isto é, quando o valor do bem for insuficiente a ponto de sequer cobrir os custos da própria execução. Não há, aqui, nenhum problema de ordem legal.

Todavia, mesmo que superada a dificuldade prática de identificar que tais Bitcoins são do devedor executado, o problema surgiria no momento seguinte: o que fazer com Bitcoins cuja penhora, ou outra medida constritiva qualquer, foi ordenada? Como bloqueá-los? Como entregá-los ao credor, ou como transferi-los para um futuro e eventual arrematante que os tenha adquirido no leilão judicial?

Outro será o cenário se os Bitcoins do devedor estiverem em poder de terceiro sujeito, como nos casos em que a criptomoeda é deixada sob a custódia de alguma corretora. Aqui, tanto a corretora poderia ser a destinatária da ordem de constrição, como ela também teria em seu poder as chaves que permitem transferir a escrituração da moeda. Assim, tanto uma ordem de pagamento em Bitcoins, como sua penhora e alienação em leilão judicial tornam-se praticamente factíveis, pois a corretora tem meios de transferir os valores escriturados para o credor, ou para o arrematante, conforme o caso.

Enfim, para o bem ou para o mal, a blockchain que registra os ativos em Bitcoin é uma entidade que adquire uma espécie de vida própria, autônoma, não sujeita a qualquer manifestação de vontade alheia, nem mesmo às ordens provenientes do exercício do poder estatal. Os registros somente podem ser alterados mediante uma manifestação de vontade proveniente de quem detém as chaves de assinatura relacionadas à conta corrente correspondente. E essa é uma afirmação puramente objetiva: é uma mera constatação de como funciona a escrituração dos Bitcoins e da impossibilidade fática de que as transferências sejam feitas de outro modo.

 

*Sobre Dr. Augusto Marcacini

– Advogado em São Paulo desde 1988, atuante nas áreas civil e empresarial, especialmente contencioso civil, contratos e tecnologia.

– Sócio do escritório Marcacini e Mietto Advogados desde 1992.

– Bacharel (1987), Mestre (1993), Doutor (1999) e Livre-docente (2011) em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

– Foi professor no Mestrado em Direito da Sociedade da Informação da UniFMU entre 2011 a 2018, lecionando as disciplinas “Efetividade da Jurisdição na Sociedade da Informação” e “Informatização Processual, Provas Digitais e a Segurança da Informação”.

– Professor de Direito Processual Civil desde 1988, em cursos de graduação e pós-graduação.

– Vice-Presidente da Comissão de Direito Processual Civil, Membro Consultor da Comissão de Informática Jurídica e Membro da Comissão de Ciência e Tecnologia da OAB-SP (triênios: 2013-2015 e 2016-2018)

– Ex-Presidente da Comissão de Informática Jurídica e da Comissão da Sociedade Digital da OAB-SP (triênios 2004-2006, 2007-2009 e 2010-2012) e Ex-Membro da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB (triênio 2004-2006).

– Autor de diversos livros e artigos, destacando-se na área de direito e tecnologia: “O documento eletrônico como meio de prova” (artigo, 1998), “Direito e Informática: uma abordagem jurídica sobre a criptografia” (livro, 2002), “Direito em Bits” (coletânea de artigos em coautoria, 2004), “Processo e Tecnologia: garantias processuais, efetividade e a informatização processual” (livro, 2013) e “Direito e Tecnologia”, (livro, 2014).

– Palestrante e conferencista.

– Colunista e membro do conselho editorial do Crypto ID.

 

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